Adeus a meu melhor amigo

Por Sérgio Spagnuolo

Eu passei a mão em seu rosto enquanto ele estava deitado naquela mesa fria. Pelo menos hoje está calor, pensei. Seus olhos me reconheciam, mas sua dor era tão intensa que ele não conseguia esboçar nenhum movimento, seu corpo totalmente rendido perante a gravidade, sem nenhuma reação muscular.

O diagnóstico de doença renal crônica no estágio 4 era basicamente impossível de superar naquele momento. Não havia diálise no mundo que atenuaria o quadro de saúde, me garantiram. O destino dele estava selado, e eu tinha dificuldade em aceitar.

Foram cerca de 15 anos de amizade – às vezes distante, às vezes muito próxima, às vezes quase protocolar. Nossa parceria foi uma união conquistada, não veio organicamente. No começo, quando moramos juntos, nos tolerávamos até que bem, mas eu tinha dificuldade de entendê-lo, ao passo que ele era meio impaciente com o meu jeito. Mas as coisas não demoraram a mudar, e nossa amizade floresceu em meio a alguns poucos atritos gerados pela convivência constante.

Ainda na sala médica, decidi de repente que não podia ficar lá para ver os momentos finais. Ausentei-me daquele ambiente ambulatorial, crente que o aperto cederia. Nenhuma luz artificial iluminava aquele corredor sem graça. Ao fim dele, uma janela solitária, daquelas que não dá pra abrir, permitia que o sol desse uma direção aos olhos. Segui a luz até o parapeito da janela. Eram umas 14h50 e o sol ainda brilhava forte, mas naquele canto do edifício a incidência solar era atenuada pela copa de umas árvores grandes, e eu conseguia olhar para fora sem que a luminosidade incomodasse meus olhos.

Do alto do segundo andar, vi em uma casa um jovem sem camisa falar com a mãe (acho que era a mãe) enquanto puxava uma camiseta do varal. No vizinho, uma mulher deitada ouvia música com a janela aberta, imóvel (talvez estivesse dormindo). No cômodo à minha esquerda, algumas enfermeiras almoçavam e contavam histórias, riam, alheias ao fato de que meu amigo agonizava a apenas alguns metros dali. Aquilo não me incomodou de jeito nenhum, mas por algum motivo me marcou. A normalidade era o que eu mais queria naquele momento.

Vi uma pessoa entrar na sala de onde eu acabara de sair e olhei para o relógio. O que para mim pareceu meia hora na verdade foram três minutos. O que estou fazendo, eu pensei, preciso estar lá com ele. Corri de volta à sala antes que fosse tarde demais.

Ele era difícil, eu sei. Não gostava de nenhum dos meus amigos, e seu jeito passivo-agressivo era motivo suficiente para que ninguém insistisse muito em gostar dele. Se bem que ele sempre se deu bem com as minhas namoradas, isso é um fato. Acontece que por trás daquela armadura existia algo bom, que poucos conseguiam ver. Talvez ele fizesse questão mesmo de ter poucos amigos, não é algo incomum, embora no fundo acho que apenas quisesse que seus relacionamentos fossem genuínos, com seu comportamento servindo como um filtro.

Passei sete anos morando fora, e, mesmo retornando com certa regularidade, me dói confessar que por um tempo eu pensei pouco nele. Houve um hiato de alguns anos no qual eu estava tão absorto em meus próprios problemas que não havia espaço para que meu melhor amigo fosse parte maior da minha vida. Você sabe que uma amizade é forte quando, mesmo com uma longa ausência, não há nada além de felicidade no reencontro.

Hoje eu olho com arrependimento para minhas ações, mas acho que amizades duradouras têm disso, na real. Às vezes a gente se distancia só para depois nos reaproximarmos.

Quando voltei a morar em São Paulo, a vida tornou-se ainda mais atribulada do que era, mas eu encontrava tempo para nossos encontros. Não tanto quanto nenhum de nós gostaria, mas mais do que antes. Nossas longas caminhadas no bairro eram um momento especial, pontuadas pelo latido de cachorros nas casas, invejosos de nossa liberdade de perambular nas ruas.

Um dos nossos momentos mais marcantes aconteceu há pouco tempo, quando estávamos na casa de meu pai e minha chave defeituosa, uma cópia mal-feita por um chaveiro preguiçoso, foi incapaz de destrancar a porta de entrada. Ficamos eu e ele na garagem, sentados no escuro da noite, no silêncio, simplesmente resolutos de que a nossa companhia era suficiente. Foi o momento em que percebi que não apenas ele era meu melhor amigo, mas eu era o dele também.

Sua respiração estava ofegante, coisa de uma inspiração por segundo, o que é muito para alguém em repouso. Eu acariciava seu rosto inexpressivo, na esperança de que isso lhe desse algum conforto. Sabia que era questão de minutos, mas queria aproveitar cada segundo como se fosse uma hora. Meu pai estava lá também. Eles se deram bem, meu pai e meu amigo, o qual também tinha aquele senhor inteligente e piadista como figura paternal. Senti o sofrimento de meu pai, que segurava uma de suas patas dianteiras.

Olhávamos em seus olhos quando o coquetel de sedativos começou a ser aplicado. Enquanto o propofol entrava em suas veias, mesmo naquele momento não me escapou da cabeça o fato de que Michael Jackson morreu por causa desse mesmo anestésico. A dor não mais o importunava e sua respiração ficou silenciosa. Sedado, chegou a vez do cloreto de potássio fazer sua função e causar a esperada parada cardíaca.

A veterinária sacou seu estetoscópio, examinou o coração e, com empatia e pesar, disse apenas "meus sentimentos". Eu e meu pai choramos naquele momento solene, dividindo a dor da perda de nosso cachorro.

Sabugo (2010-2025) foi testemunha da melhor parte da minha vida, e também de alguns dos meus piores momentos. Ele sempre estava lá comigo, mesmo quando eu não estava com ele.

24 de fevereiro de 2025